Vivemos tempos onde muitos de nós, mais ou menos confessadamente, perdem a fé no ser humano e no seu poder de transformar o mundo. Como se tivéssemos esse direito, o de perder a fé. Pois, pros que não foram testemunha, conto já no início desse texto um segredo para restaurar a fé dos mais céticos entre nós. Na tarde de domingo do dia 14 de junho, cedemos ao céu um santo que viveu até então nessa cidade. A prova incontestável ficou na terra, marcada pelas pegadas dos seus gestos e do seu testemunho. Pegadas de um homem que não tinha fissuras entre a contemplação, a prática e a eucaristia. Um cristão apaixonado pelo dom da vida, pela família e pela mãe natureza.
E nessa tarde, a ilha parecia se preparar para a sua despedida. Um céu nublado, com um profundo sentimento de recolhimento e silêncio. Uma tarde com o frio e o vento do início de inverno. Para José, era o florescer da primavera e de sua Páscoa definitiva. Na terra, as lágrimas de saudades dos filhos e dos amigos. No céu, o Pai com um enorme sorriso e o seu coração voltado só para o seu filho, como se fosse o único, com o coro dos anjos e dos santos exclamando na porta do paraíso: bem vindo filho amado do nosso coração. E José, com o seu largo sorriso, com sua humildade e com sua doce ternura, diz: Enfim, estou te vendo face a face, mistério inacessível que apalpei tantas vezes em experiências místicas, em fagulhas de luz e agora tão perto que posso tocá-lo.
Tive a graça de acompanhar José nos últimos tempos, levando a presença de Jesus e da eucaristia nos domingos, nos fins de tarde. A cada encontro fui descobrindo o encantamento que tinha com a eucaristia, quando revelava a sua profunda fé no amor a Jesus. A partir desta relação, descobria por que sua trajetória sempre foi encharcada junto aos pobres, com um coração imensamente solidário, com fome e sede de justiça social. Sua sólida formação humana e intelectual foi construída com os Jesuítas, mas sua espiritualidade e seu estilo de vida eram genuinamente Franciscanos. Optou pela Sagrada Família casando-se com Dalva. Viveu um grande amor de onde tudo surgia, mostrando a beleza da vida sacramental numa cumplicidade que se entendia pelos olhares.
Recebi sexta-feira uma mensagem de um de seus três filhos, Guido, dizendo: “Gostaria de convidá-lo a visitar o pai neste final de semana. Acho que ele está encerrando sua linda trajetória de vida. Está muito fraco e não está se alimentando mais, tenho certeza de que sua presença e fé seriam o desejo dele nesta etapa da vida.” Me organizei e fui às 16h30 do mesmo dia. Quando cheguei, o encontrei reclinado na poltrona, com os olhos fechados, um semblante sereno e silencioso. Bebia uns golinhos de água com muita vontade. Ao lado estava sua amada Dalva e os filhos Renato e Guido. Depois chegou Aleixo, fizemos as orações e dei a Unção dos Enfermos. Senti que ainda ouvia e quando lhe dei a benção, fez um pequeno respiro de alívio e contentamento. Tinha uma expressão de contemplação e serenidade, como se dissesse: Tudo está consumado, estou retornando ao seio do Pai. Naqueles golinhos de água com tanta vontade, como Jesus no alto da cruz, poderia ouvi-lo dizendo: Tenho sede. Creio que para Seu José não era uma sede puramente física, mas uma sede do mistério que envolveu a sua vida nesses 91 anos. Sua fé envolvia todas as dimensões de sua vida: a familiar e a do homem público.
Seu José foi um homem que viveu experiência do encontro, que deixou-se ser encontrado por Jesus. Enquanto caminhava para ir ao cemitério da paz, me vinha a cena de tê-los vistos tantas e tantas vezes caminhando pelas ruas da cidade escutando os mais empobrecidos, moradores em situação de rua, desempregados, que acolhiam com uma escuta amorosa. Ninguém ficava fora de sua partilha de bolso e coração. Quantas vezes Dalva me ligava contando das situações que haviam encontrado para saber como poderíamos ajudar. José deixou-se ser tocado pelo mistério da gratuidade e nutriu-se dela como alimento espiritual.
Para entender o mistério da experiência do encontro de Seu José com o Cristo, recorro a Marte Buber, que fala da relação do encontro entre o “Eu” e o “Tu”. Um encontro sem distância e sem divisão, onde o outro é somente Tu e preenche o céu e a terra com sua existência. Não porque não exista nenhum outro ser, mas porque tudo vive na luminosidade do Tu, sem mesmo pronunciar esse nome. Nesse encontro não existe momentos, não existe antes nem depois. Nele, nasce a verdadeira relação do Eu e do Tu, onde cada um ilumina e é iluminado, criando uma unidade, uma totalidade e assim, todo o universo.
Essa experiência eu sentia com Seu José, quando levava a eucaristia aos domingos. Em alguns momentos ele parecia apalpar o mistério com as suas próprias mãos. Uma vez, tomou as mãos o pão consagrado, ficou olhando e eu disse: Seu José, toma a eucaristia. Ele disse: deixa eu olhar um pouquinho! Seus olhos se enchiam do mistério e ali ficava quieto. Que mistério é este? Que beleza é essa que silencia? Essa experiência o levou, ao longo da vida, a ser “um homem conquistado pelo Cristo” como diz São Paulo.
Por isso, seguia os rastros dele nas Galiléias das periferias da Grande Florianópolis, partilhando suas experiências e o conhecimento que tinha em gestão pública. Nos ensinou, por exemplo, a destrinchar a peça do orçamento público. Com ele aprendemos a fazer o orçamento participativo, entendendo a importância de articular as reivindicações com proposições orçamentadas.
Temos boas lembranças de sua presença em nossos projetos sociais e educativos. Quando ia no Morro do Mocotó, na Acam, sempre levava livros. Almoçava nos projetos rodeado de crianças e quando voltava sempre perguntava: O que posso fazer a mais? Aproximava nas suas relações o centro e a periferia, porque a meta do seu coração era a justiça social. Via os bens públicos, como bens de acesso de direito a todos. Acreditava que na gestão pública, as prioridades para compor o orçamento deveriam nascer das demandas da periferia. Como homem público, exerceu a ética nos processos administrativos por onde passou. Sempre fez política com P maiúsculo, pois a base de sua caminhada eram os valores humanos e evangélicos.
Seu estilo de vida, era marcado por uma expressão de São Paulo: “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus”.
Foi um homem que tentou moldar a vida nas bem aventuranças de Mateus, como razão de sermos felizes no caminho da comunidade. Seus gestos, eram inspirados em Mateus 25,31: “Todas as vezes que fizerem ao desses irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizeram”. Seu José me ensinou a ser mais padre e mais apaixonado pelo Reino de Deus. Ele combateu o bom combate da vida, guardou sempre a fé numa prática de gestos. E Deus, lhe deu a coroa da vitória, ou seja, o abraço do Pai ao filho amado.
Minha eterna gratidão por tê-lo encontrado em minha vida!
Padre Vilson Groh.