Last Updated on 5 de November de 2025 by Lucano Brito
A solidariedade, quando entendida em seu sentido mais profundo, não é apenas um gesto de ajuda, mas um modo de organizar a vida social e econômica a partir do cuidado mútuo. É um princípio que integra espiritualidade, ética e política, unindo fé e razão pública em torno de um mesmo compromisso: colocar o ser humano e a casa comum no centro das decisões.
O Papa Leão XIV, na exortação Dilexi Te, recorda o chamado do Papa Francisco para que a Igreja e a sociedade voltem seus olhos aos pobres, não apenas como destinatários de políticas ou favores, mas como protagonistas de cultura, economia e transformação social. A solidariedade, diz ele, exige enfrentar as causas estruturais da pobreza, da desigualdade e da exclusão, combatendo a lógica do lucro absoluto e do “império do dinheiro”. Essa é uma solidariedade que faz história: nasce da base, organiza-se em rede e se manifesta como poder coletivo.
A referência aos mosteiros beneditinos e às cooperativas mostra que a economia solidária é uma tradição antiga, não uma utopia moderna. Desde os tempos em que o trabalho comum e a partilha sustentavam comunidades autônomas, a cooperação revelou-se uma alternativa concreta à acumulação. Francisco chamou a isso de “milagre da cooperação”: quando pessoas se unem para criar soluções, rompem a paralisia da indiferença e transformam a vida em comunhão. O verdadeiro “paralítico”, afirma ele, é a sociedade que se fecha em si mesma, incapaz de enxergar o outro.
Essa visão encontra respaldo na Doutrina Social da Igreja e na Laudato Si, que uniu ecologia, economia e ética em uma nova compreensão de desenvolvimento humano integral. Como destacou o Cardeal Pietro Parolin, as cooperativas e as redes comunitárias são respostas concretas à crise ambiental e social, porque recolocam a técnica e a economia a serviço da vida, e não do lucro. Quando pequenos produtores, comunidades locais ou instituições públicas escolhem caminhos sustentáveis, estão encarnando o princípio de que os problemas sociais se resolvem por meio de vínculos solidários — não pela soma de interesses individuais.
A economista Elinor Ostrom, ao estudar a governança dos bens comuns, reforça empiricamente essa intuição: comunidades que compartilham regras, responsabilidades e decisões conseguem gerir recursos coletivos de forma mais eficiente e duradoura do que mercados ou Estados centralizados. A autogestão cooperativa, baseada em confiança e reciprocidade, é uma expressão secular do mesmo princípio teológico da “pertença mútua dos amigos” — a convicção de que a vida floresce quando é partilhada.
Na dimensão institucional, o Tribunal de Contas pode também traduzir essa ética da solidariedade em linguagem de gestão pública. O controle das contas públicas, quando orientado pelo bem comum, deixa de ser mero exercício burocrático e torna-se um serviço à justiça social. Os Tribunais, detentores de um vasto conhecimento técnico sobre a administração pública, podem — sem violar suas atribuições — colocar essa expertise a serviço da sociedade, especialmente dos pequenos municípios, ajudando-os a planejar e executar políticas mais eficazes e humanas.
A eficiência administrativa, nesse contexto, é também expressão de solidariedade. Gastar bem é cuidar bem. Quando o Estado utiliza seus recursos com responsabilidade, ele protege a vida daqueles que mais dependem dele: os pobres, os vulneráveis, as crianças e jovens das periferias. O compromisso ético na gestão pública é, portanto, uma forma concreta de amor social — a tradução institucional do “coração solidário” que move a fé em direção à justiça.
A solidariedade estrutural pode se construir em três dimensões interligadas:
- A dimensão espiritual e cultural – o reconhecimento de que toda transformação começa no coração: uma reforma interior que se traduz em fraternidade, pertença e compromisso social.
- A dimensão econômica e comunitária – o fortalecimento de redes cooperativas, economias locais e práticas sustentáveis que geram riqueza compartilhada e autonomia coletiva.
- A dimensão pública e institucional – a gestão ética dos bens comuns, guiada pela eficiência com propósito social, pela transparência e pelo compromisso de servir prioritariamente os que mais precisam.
O coração solidário é, portanto, um princípio organizador da vida social. Ele inspira tanto as comunidades de base quanto as instituições do Estado, tanto a economia popular quanto os órgãos de controle, a atuarem como partes de um mesmo corpo social — diverso, mas unido pelo cuidado.
Quando fé, técnica e política se alinham em torno da dignidade humana, a solidariedade deixa de ser um ideal moral e torna-se estrutura de paz.
É nesse ponto que o amor ao próximo se transforma em sistema: cooperativas que alimentam famílias, redes comunitárias e instituições, além dos tribunais de contas, que zelam pelo bem comum, e políticas públicas eficazes que assegurem os direitos universais.
Assim se constrói uma sociedade do coração: onde a justiça é forma de amor e a eficiência, um gesto de solidariedade.
Texto elaborado com contribuições de Vilson Groh, Mário Augusto Capella Tavares e Guilherme Gomes Krueger


